
As fachadas ativas, conceito fundamental do urbanismo contemporâneo, representam o intuito de cidades mais seguras, dinâmicas e humanas. A ideia é simples e poderosa: ao ocupar os pavimentos térreos dos edifícios com comércios, serviços e espaços culturais, cria-se uma interface vibrante entre o espaço privado e a esfera pública. Essa interação gera fluxo de pessoas, iluminação natural e artificial, e os “olhos na rua” — a vigilância social informal que teoricamente inibe a criminalidade e promovem um senso de comunidade.
Impulsionadas por planos diretores e legislações de incentivo em metrópoles como São Paulo, as fachadas ativas tornaram-se um elemento quase obrigatório em novos empreendimentos imobiliários, especialmente os de uso misto. Incorporadoras abraçaram o conceito, vendendo a visão de uma vida urbana integrada, onde é possível tomar um café, ir à farmácia ou jantar a poucos passos de casa.
No entanto, a realidade pós-entrega de muitos desses empreendimentos tem sido alarmante. Placas de “Aluga-se” e “Vende-se” se multiplicam em térreos recém-construídos, transformando a promessa de vitalidade em corredores de silêncio e abandono. A alta taxa de vacância nessas áreas nobres não é apenas um problema para os proprietários dos imóveis; é um sintoma de uma desconexão entre o planejamento urbano, o mercado imobiliário e as reais necessidades do comércio e dos consumidores.
O Diagnóstico da Vacância
Para solucionar o problema, é preciso primeiro compreender suas raízes, que se entrelaçam em fatores econômicos, comportamentais e de design.
- Descompasso Econômico e Estrutural
- Precificação especulativa: Frequentemente, o valor de locação ou venda desses espaços é calculado com base no custo de construção e na expectativa de retorno do empreendimento como um todo, e não na realidade comercial da rua onde ele se insere. O aluguel se torna proibitivo para pequenos e médios comerciantes, que são justamente os que trariam diversidade e autenticidade ao local. O lojista potencial faz uma conta simples: o aluguel elevado, somado a custos de condomínio, IPTU, e o investimento na instalação da loja, torna a operação inviável antes mesmo de abrir as portas.
- A comparação com shopping centers: Os shoppings oferecem um ecossistema controlado: segurança garantida, estacionamento, climatização e um fluxo de clientes já consolidado. Para muitas marcas, especialmente as grandes redes, o risco de operar em uma loja de rua — sujeita a intempéries, questões de segurança pública e a necessidade de gerar seu próprio tráfego — é significativamente maior. A fachada ativa precisa oferecer vantagens competitivas claras para atrair esses inquilinos.
- Falhas no Design, na Concepção do Espaço e na Valoração
- Padronização e inflexibilidade: Muitos projetos entregam espaços padronizados, frequentemente grandes demais e sem a infraestrutura básica necessária para diferentes tipos de operação. Uma loja de 200 m² pode ser ideal para um mini-mercado, mas é inadequada para uma cafeteria, um chaveiro ou uma barbearia. A falta de flexibilidade para subdividir esses espaços cria uma barreira de entrada para negócios de menor porte.
- Falta de infraestrutura essencial: Pontos de gás para restaurantes, sistemas de exaustão, capacidade elétrica para equipamentos específicos, ou até mesmo banheiros e áreas de carga/descarga adequadas são frequentemente negligenciados no projeto inicial. A adaptação desses elementos representa um custo altíssimo para o locatário, tornando o negócio inviável.
- Desconexão com o entorno urbano: Uma fachada ativa não sobrevive isoladamente. Ela depende do fluxo de pedestres. Calçadas estreitas, falta de arborização, iluminação pública deficiente, ausência de mobiliário urbano (bancos, lixeiras) e a dificuldade de acesso por transporte público ou a falta de áreas de estacionamento (essenciais para o varejo) de curta duração podem matar o potencial comercial de uma rua, por mais moderno que seja o edifício. Antigo e verdadeiro ditado: No Parking, No Business.
- Falta de um planejamento especializado: comumente as fachadas ativas não são a prioridade durante a concepção dos projetos, sendo simplesmente a “área que sobrou no térreo” dividida da forma que a engenharia julgar mais conveniente para o projeto, sem praticamente conhecimento das necessidades do varejo. Isso gera espaços por vezes sem nenhuma atratividade para lojistas e por vezes pior, gera espaços operacionalmente inviáveis.
- A contradição de valor: as lojas de fachada ativa são normalmente permutadas e ou vendidas a investidores por um preço base por m2 independentemente de seu tamanho, ou seja, quanto maior a loja, maior o valor da transação de compra ou permuta. Porém no mercado de locação para o varejo a realidade é outra, quanto maio a loja, mais difícil de ser locada, e significativamente menor o valor da locação por m2. Na prática, no varejo, o valor de locação por m2 de uma loja de 300m2 é por volta da metade do valor de locação por m2 de uma loja de 40m2, ou menos.
Construindo Soluções Viáveis e Integradas
A solução para a alta vacância não virá de uma única frente, mas de uma ação coordenada entre incorporadoras, proprietários, poder público e os próprios comerciantes.
- Estratégias para Incorporadoras e Proprietários
- Design Adaptável e “Plug and Play”: Os novos projetos devem prever flexibilidade desde a concepção. Isso significa projetar lajes e sistemas que permitam a fácil subdivisão dos espaços. Além disso, entregar as lojas em formato “plug and play” ou white-box, com infraestrutura básica (pontos elétricos, hidráulicos, exaustão e climatização) pronta, reduz drasticamente o custo e o tempo de instalação para o inquilino.
- Flexibilização dos Modelos de Locação: O modelo tradicional de aluguel fixo e elevado precisa ser revisto. Alternativas incluem:
- Aluguel Percentual: Um valor fixo mínimo (mais baixo) somado a um percentual sobre o faturamento da loja. Isso alinha os interesses de proprietário e lojista: ambos ganham com o sucesso do negócio.
- Carência Progressiva: Oferecer períodos de carência estendidos para a instalação da loja e um sistema de aluguel com descontos progressivos nos primeiros anos de operação, permitindo que o negócio mature.
- Allowance: O proprietário investe ou subsidia parte da obra de adaptação do imóvel (fit-out), reduzindo o custo inicial para o lojista e tornando a proposta mais atrativa.
- Curadoria Ativa e Mix Estratégico: Em vez de simplesmente alugar para o primeiro interessado, os proprietários (ou a administração do condomínio) devem atuar como curadores, planejando um mix de lojas que se complementem. O objetivo é criar um destino. Uma boa padaria atrai moradores pela manhã, um restaurante movimenta o almoço, e um bar ou uma sorveteria geram fluxo à noite. A sinergia entre os negócios é mais valiosa a longo prazo do que o aluguel máximo obtido a curto prazo.
Estas estratégias, principalmente as duas últimas são de difícil e ou quase impossível implementação quando as lojas de um conjunto de fachada ativa são de diferentes proprietários, onde cada um tem seus interesses próprios e não há uma coordenação entre eles para a locação e solução desses problemas. Este infelizmente é o cenário mais comum, quando o incorporador vende as lojas e ou permuta com diferentes terrenistas na incorporação.
- Inovação nos Modelos de Uso
- Usos Temporários e Pop-ups: Em vez de manter um espaço vazio por meses, os proprietários podem oferecê-lo para usos temporários. Lojas pop-up, galerias de arte itinerantes, showrooms de marcas online ou espaços para eventos podem gerar receita, movimentar a rua e servir como “teste” para futuros inquilinos permanentes.
- Apoio a Novos Modelos de Negócio: As fachadas ativas podem ser o lar ideal para novos conceitos que mesclam o físico e o digital. Dark kitchens com uma pequena frente para retirada, micro-hubs de logística para entregas de e-commerce, ou espaços de coworking com um café aberto ao público são exemplos de usos que se adaptam às novas realidades de consumo.
Conclusão: Da Transação Imobiliária à Construção de Comunidade
A alta vacância das fachadas ativas é um sinal de alerta de que o mercado imobiliário e o planejamento urbano precisam evoluir. O paradigma de simplesmente construir uma “caixa” e esperar que um lojista a ocupe a qualquer custo está ultrapassado. O sucesso desses espaços depende de uma mudança de mentalidade: da visão de uma mera transação imobiliária para a de uma construção ativa de comunidade.
A solução exige colaboração, flexibilidade e uma visão de longo prazo. Proprietários precisam se tornar parceiros de seus inquilinos; incorporadoras devem projetar com a diversidade de usos em mente; e o poder público precisa ser o facilitador que garante um ambiente urbano seguro, agradável e propício para os negócios florescerem.